As 160 páginas em preto e branco de Terra-Pátria narram parte da infância da autora canadense Nina Bunjevac. A obra é focada principalmente no choque de identidades e ideologias que culminou tanto na existência dela quanto na dissolução da Iugoslávia e nos conflitos bélicos nos Bálcãs nos anos 1990. Entrevistei a quadrinista e transformei esse papo em matéria para o jornal Folha de S.Paulo, noticiando o lançamento da edição brasileira da obra, pela Zarabatana Books, em tradução de Claudio R. Martini. Você lê o meu texto clicando aqui.
No meu texto para a Folha escrevi sobre o ponto de partida do livro, as reflexões de Bunjevac durante a produção da HQ e os paralelos entre a realidade vivenciada por ela na infância e a invasão russa à Ucrânia. Volto a deixar o link para a minha matéria e compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com a autora. Papo massa, saca só:
“O questionamento de uma herança ancestral permeou o zeitgeist da minha geração”
Você poderia me contar, por favor, sobre a origem de Terra-Pátria? Houve algum ponto de partida ou incentivo em particular para o início da produção desse quadrinho?
Eu publiquei um conto chamado August 1977 no meu primeiro livro, Heartless, no qual encaro o legado de meu pai e o rejeito. Quando o livro foi lançado na Sérvia, essa história em particular recebeu várias resenhas, tanto na Sérvia quanto na Croácia. Um autor e figura cultural conhecida, Miljenko Jergovic, escreveu uma resenha brilhante e poderosa em um dos principais jornais croatas. Miljenko também foi um autor que lidou com o legado de sua avó paterna, implicada em crimes de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Logo aprendi que esse tema, o questionamento de uma herança ancestral, permeou o zeitgeist da minha geração, especialmente aqueles que cresceram na antiga Iugoslávia. Após a dissolução do país, nossas culturas individuais foram profundamente enraizadas em nacionalismo e tribalismo. ‘Ou você está conosco ou está contra nós’, passou a ser o lema do dia. Fazer um indivíduo deixar o coletivo e questionar o status quo – sejam seus ancestrais, seus líderes ou as autoridades da igreja – era visto como o maior dos pecados. As pessoas que fizeram isso foram incrivelmente corajosas. Terra-Pátria foi a minha contribuição para esta causa que, neste momento particular da história, se tornou uma questão existencial.
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Foi na casa da minha avó, quando esbarrei com um quadrinho da [editora] Bonelli chamado Dr. No. Era uma versão em quadrinhos do filme. Cada página tinha dois quadros panorâmicos, um embaixo e outro em cima. Eu fiquei hipnotizada. Como tínhamos uma televisão em preto e branco, vi as duas coisas [quadrinho e filme] como uma só, eu devia ter quatro anos. Ainda assim, até hoje, me inspiro mais em filmes do que em quadrinhos. Os primeiros quadrinhos que comecei a comprar regularmente foram os quadrinhos de Carl Barks, publicados na [revista] Disney Digest e na Disney Almanac, lançadas semanalmente e quinzenalmente. A Iugoslávia tinha uma cena rica de quadrinhos. Jornaleiros e livrarias tinham em média cerca de dez publicações diferentes de quadrinhos, italianas, americanas e franco-belgas.
Tenho curiosidade em relação às suas técnicas e rotinas como autora. Com quais materiais você trabalha? Você tem alguma rotina em particular enquanto está trabalhando em uma HQ? Você teve alguma rotina em particular enquanto estava trabalhando em Terra-Pátria?
Minha rotina é muito simples e nada emocionante. Eu esboço, desenho e redesenho, escaneio, desenho outra vez, aí levo três dias para arte-finalizar cada página. Cerca de 40% do meu tempo reservado para os projetos é ficar sentada sem fazer nada, esperando a ideia certa, ou a resposta certa, vir à mente. É como pescar, mais do que qualquer coisa. Para fazer isso bem e ter um suprimento constante de ideias, passo longos períodos alimentando a mente, lendo livros, ouvindo podcasts e fazendo cursos online.
Você tem um traço muito pessoal e identificável. Como você chegou nesse estilo? Quais tipo de leituras e práticas a levaram a fazer quadrinhos e desenhar da forma como você faz quadrinhos e desenha?
Minha formação é em design gráfico e, depois, em artes plásticas. Antes de começar a desenhar quadrinhos, aos 30 anos, fazia pinturas a óleo, principalmente figurativas, e esculturas. Mudar para o Canadá aos 16 anos foi uma experiência traumática, pois não compreendia a língua, mas queria escrever. Naquela época, eu dava muita ênfase à língua, não à narrativa. Trabalhar com esculturas me parecia como um diálogo entre objetos e conceitos e, o mais importante, uma forma de contar histórias. Isso foi uma revelação para mim. Logo comecei a experimentar com quadrinhos, a fim de colocar em ação o meu contador de histórias interior. O estilo levou um tempo para se desenvolver. Eu acho que ainda está em desenvolvimento, e está constantemente sendo influenciado por filmes, livros, quadrinhos, arte.
“Se não fosse por minha avó, eu nunca teria me tornado uma contadora de histórias”
Terra-Pátria é não apenas sobre a sua família e sua infância, mas também sobre memórias, guerra, extremismos, ódio, amor, política e por aí vai… Fico curioso em relação à forma como você conciliou todos esses temas enquanto desenvolvia o livro. Foi desafiador para você administrar todos as experiências pessoas que você retrata no livro com todos os fatos e ocorrido históricos e políticos que também se fazem presentes na obra?
Bem, antes de começar a trabalhar em Terra-Pátria fui convidada a participar de um workshop organizado pelo Center for Peace Studies de Zagreb e pelo Centre for Cultural Decontamination de Belgrado. O workshop se chamava Artists in Exile [Artistas em Exílio], e reunia artistas, autores e cineastas de ex-repúblicas iugoslavas, que fugiram da região por causa da guerra e se estabeleceram em outras partes do mundo. A experiência foi quase mística, compartilhando comida, histórias, músicas, chorando e rindo juntos. Apaziguou algo em mim. Até então, eu pretendia escrever com emoção e com um ponto de vista político definido. Depois dessa experiência, mudei meu ponto de vista para uma perspectiva mais pacífica, como uma contadora de histórias neutra, que expõe os fatos e conta com a inteligência do leitor para tirar suas próprias conclusões. Eu não queria usar sentimentalismo para manipular o leitor e não queria ofender ninguém. Sempre procurei maneiras de expor nossas semelhanças, não nossas diferenças.
Bezimena também é uma obra muito pessoal, mas que você optou por conta de forma completamente diferente de Terra-Pátria. Como você estabeleceu a forma como iria contar cada uma dessas histórias?
Comecei Bezimena sem esperar que ele chegasse em mim. Ou seja, não fui pescar como costumo fazer. Eu pretendia fazer um livro pornográfico, ou erótico, baseado em diferentes fetiches. No entanto, o livro, ou meu lado direito do cérebro, tinha outras ideias. Essas idéias me vieram inicialmente como sonhos, ou como ocorrências sincronísticas, que desenvolvi posteriormente por meio de exercícios de imaginação ativa. Um dos símbolos que surgiu foi o de Ártemis, e passei muito tempo contemplando isso. Ao longo de seu domínio sobre rios, portos, montanhas e caça, ela também é uma deusa que pune os predadores sexuais e protege as virgens. Bezimena tornou-se essencialmente uma releitura do mito de Ártemis, ou Diana, e Acteon.
Qual foi a recepção da sua família em relação a Terra-Pátria?
Ficaram todos satisfeitos e me apoiaram.
Você conta no livro como a sua avó era uma grande contadora de histórias e como você gostava de estar na companhia dela. O quanto essa relação com a sua avó influenciou a sua carreira como autora e contadora de histórias?
Se não fosse por minha avó, eu nunca teria me tornado uma contadora de histórias. Eu costumava praticar a minha escrita escrevendo as memórias de guerra dela. Ela era uma criança-soldado e se juntou aos guerrilheiros iugoslavos aos dezesseis anos. E, poxa cara, como ela sabia contar uma história! Ela mantinha uma sala inteira sob seu feitiço!
Você começa o seu livro contando como as memórias da sua mãe são seletivas e como a memória da sua avó era boa. Como é a sua relação com as suas memórias?
Eu definitivamente me apego às minhas memórias. Às vezes, eu gostaria de poder apagar algumas Um dos desafios da minha vida é viver o momento, e me esforço muito para isso.
“Enquanto houver ‘eles’ e ‘nós’, teremos outra pessoa em quem projetar nossos demônios”
Terra-Pátria mostra como ódio e extremismos fomentam mais ódio e extremismos. Estamos vivendo em um mundo que parece cada vez mais extremista e cheio de ódios. Você vê muitos paralelos entre a realidade vivida pelo seu pai, a família dele e a sua família e a nossa realidade atual?
Acho que o que aconteceu na Iugoslávia foi apenas a amostra de monóxido de carbono que matou o canário. Estamos agora experimentando toda a explosão disso. O filósofo austríaco Rudolf Steiner teria chamado isso de “a guerra de todos contra todos”. Então, deve ser algo que vem da natureza humana, como agora está se manifestando globalmente.
Quais são as suas principais reflexões sobre a invasão russa à Ucrânia?
Um amigo meu, o astrólogo Ray Grasse, me enviou um artigo que escreveu em 1982, sobre a relação entre EUA e Rússia (na época União Soviética), que ele vê como a repetição da mesma dinâmica estabelecida pela divisão do Império Romano em as partes ocidentais e orientais, ou o Cristianismo no Catolicismo e na Igreja bizantina. Enfim, ele vê o mundo ocidental e os EUA representando o Império Romano do Ocidente e a Rússia representando o Império Romano do Oriente. Isso está enraizado em suas mitologias, costumes, seu senso de significado ou pertencimento. Ambas as contrapartes são expansionistas e tendem a colonizar. Essa dinâmica ocorreu ao longo da história e durante a Guerra Fria. Eu tendo a concordar com isso, e o que estamos testemunhando agora [com a guerra na Ucrânia] é o mais recente na disputa global, entre as encarnações mais recentes desta divisão, a OTAN e a Rússia.
Você vê alguma relação entre a invasão russa à Ucrânia e a história que você conta em Terra-Pátria?
Com certeza. Em nenhum lugar estão as réplicas dessa divisão no Império Romano, e o Cristianismo em Catolicismo e Ortodoxia Oriental, tão evidentes quanto nos Bálcãs, já que a península balcânica tem sido uma fronteira histórica entre os dois. É tão irônico que todos parecem perder a mensagem dos Evangelhos: crer em Cristo é amar o próximo. Ivan Dominic Illich, padre católico romano, filósofo e crítico social, escreveu sobre como, nos primeiros séculos do cristianismo, cada casa teria um colchão extra pronto, um pedaço extra de pão e água, caso um estranho batesse à porta precisando de abrigo. A caridade, ou a crença em Cristo, era uma questão de escolha pessoal. Quando o cristianismo chegou aos Bálcãs, já havia se tornado romanizado, institucionalizado e expansionista; o poder de escolha e discernimento pessoal foi sacrificado perante às instituições. Misturar a mentalidade de tribo de guerra, com religiões institucionais impostas pelas culturas guerreiras dominantes, e a subsequente divisão do cristianismo em catolicismo e ortodoxia oriental, foi uma receita para o desastre. Então, irmão lutou contra irmão, porque um apoiou Roma, ou OTAN, e outro apoiou Constantinopla, ou Ortodoxia Oriental, ou seja lá o que for.
Lembro da primeira vez que li o Palestina do Joe Sacco. Eu era muito novo e fiquei com a impressão que faltava uma página no fim da minha edição, porque era um final muito abrupto. Depois compreendi o ponto dele: são conflitos que não acabaram e não tem um fim em vista. O final de Terra-Pátria não chega a ser tão abrupto quanto o de Palestina, mas fiquei com a mesma impressão de não ter acabado. Os conflitos em torno da realidade da sua família também não parece ter chega ao fim. Essa leitura faz sentido para você?
Totalmente. Isso continua acontecendo porque continuamos recontando a mesma história várias vezes. Enquanto houver “eles” e “nós”, teremos outra pessoa em quem projetar nossos demônios, em vez de nos voltarmos para dentro. Mas para conhecer a si mesmo adequadamente, é preciso separar-se do coletivo, física ou espiritualmente, e isso pode ser um processo muito doloroso para a maioria das pessoas.
“Acho que os leitores brasileiros vão entender meu trabalho. No fundo, somos todos iguais”
Fico curioso em relação à sua visão de mundo no momento. O Trump era o presidente dos Estados Unidos até outro dia e Bolsonaro – provavelmente mais estúpido, xenófobo, conservador e pior de todas as formas que Trump – é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você consegue ser de alguma forma otimista em relação ao nosso futuro?
Muitas vezes penso em algo que Peter Ouspensky, o filósofo e místico russo escreveu em seu livro In Search of the Miraculous. O livro é um relato abrangente e extenso das idéias do professor de esoterismo grego armênio Georges Gurdjieff. O texto em questão vem das reflexões de Gurdjieff sobre a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Ele afirma que, em tempos em que grandes civilizações caem, as pessoas se tornam como autômatos, rejeitam o conhecimento e são facilmente manipuladas por seus líderes através do medo. Nesses momentos, escreveu Gurdjieff, o planeta reage a padrões psíquicos negativos e provoca mudanças climáticas. Isto foi escrito em 1915. Sinceramente, não vejo esperança, a menos que os indivíduos saiam da colméia e comecem a pensar por si mesmos.
Ainda sobre o Brasil: quais os seus sentimentos ao ver o seu trabalho publicado em um país como o Brasil? Você fica curiosa em relação à forma como seu livro vai ser lido e interpretado em um contexto tão diferente do seu?
Fico extremamente feliz por ser publicada no Brasil, e fiquei extremamente triste que a pandemia de COVID-19 começou quando eu planejava para participar de um festival por aí. Eu estava animada para conversar com as pessoas, aprender mais sobre as suas culturas e apenas respirar seu ar. Acho que os leitores brasileiros vão entender meu trabalho. No fundo, somos todos iguais.
Você pode recomendar, por favor, algo que está lendo, ouvindo e assistindo no momento?
Gostei muito do Ethos, minissérie turca da Netflix. Belo texto, especialmente para os conhecedores das ideias junguianas. Ouço regularmente o podcast This Jungian Life, apresentado por analistas junguianos que também são amigos. Recentemente, re-assisti alguns dos meus filmes favoritos. Dois me pegaram com mais força do que antes: Il Decameron, de Pasolini; WR Mysteries of The Organism, de Dusan Makavejev; e Seven Beauties, de Lina Wertmueller. Sempre recomendo esses.
Você está trabalhando em algum projeto novo no momento?
Agora estou trabalhando em um quadrinho mudo de 25 páginas, inspirada em [Frans] Masereel, para uma editora francesa. Deve ser publicado em outubro deste ano.