Você provavelmente conhece o trabalho do Gustavo Magalhães, mesmo que não saiba necessariamente que é do Gustavo Magalhães. Ele tem a conta dele no Instagram e a newsletter Antes Que Eu Me Arrependa (onde publica a tira No Meio Fio), mas também faz ilustrações editoriais para várias publicações e marcas, nacionais e gringas – a lista é longa, mas inclui New Yorker, Intercept, Forbes, New Republic, Adidas, Sony Music e por aí vai. Por isso digo, mesmo que você não o conheça, provavelmente já esbarrou com algum trabalho dele por aí.
Convidei o Gustavo Magalhães para fazer a arte de 11 anos do Vitralizado. Você já viu, né? No fim das contas ele criou todo um ÉPICO em torno da jornada de um leitor de quadrinho em busca de seu gibi na banca da rua. Tem algumas participações especiais (inclusive dos personagens da No Meio Fio) e mais um ou outro easter egg.
Como já escrevi por aqui, depois das ilustrações mais introspectivas da Deborah Salles (8 anos), do Galvão Bertazzi (9 anos) e da Grazi Fonseca (10 anos) nos três anos da pandemia, vejo certa poesia na “saída de casa” retratada na arte do 11º aniversário. Tem bagunça, alegria e criança. Mais o menos como anda a vida por aqui.
Bati um papo com o Gustavo Magalhães sobre a produção da arte celebrando os 11 anos do Vitralizado, mas fomos além. Falamos sobre ler gibi, desenhar, técnicas, música, redes sociais e as origens e o futuro da No Meio Fio. Papo bão demais, saca só:
“Direções muito específicas acabam atrapalhando o processo”
Eu vou começar perguntando sobre a sua experiência com o cartaz de aniversário do blog. Eu acho que dei uma certa dor de cabeça para você… Começamos trabalhando com uma versão, depois tomamos outro rumo. Também acho que fui meio vago nas minhas orientações. Enfim, o quanto desse meu direcionamento ajudou no desenvolvimento do seu trabalho? Geralmente você prefere direcionamentos mais específicos do que os meus para trabalhos do tipo?
Eu discordo de você aqui, não vejo como dor de cabeça e entendo isso tudo como parte do processo.
Debatermos, testarmos e decidirmos juntos fez parte do que deixou ele legal. E que bom que mudamos de ideia não é? Sobre seu direcionamento, acredito que foi fundamental. Como o cartaz foi trabalho autoral e pessoal para ambos, exprimir personalidade e significado que seja real para nós dois ao mesmo tempo só foi possível com sua participação. Em casos como esse, eu adoro a participação e envolvimento de quem me contrata. Diferente de trabalhos mais comerciais, onde a visão e o objetivo podem parecer o mesmo, só que eventualmente é bem diferente. Aí direções muito específicas acabam atrapalhando o processo, em linhas gerais muitos diretores querem usar o artista como uma impressora para suas ideias. No fim isso acaba limitando e silenciando a voz e a visão artística.
Você tem bastante experiência com ilustração editorial. Como costumam chegar as orientações e as demandas para trabalhos do tipo? Varia muito de publicação para publicação?
Varia bastante. Desde quem pensa que você é uma impressora, até quem te dá tanta liberdade que você acaba por nem saber de onde partir.
A maneira que eu mais gosto de trabalhar é quando me enviam o tema do artigo resumido e com direções mais gerais do clima da matéria, se tiveram algum tipo de norte na redação e etc. Daí consigo trabalhar em conjunto, rascunhando de maneira mais livre e consultando sempre quem me dirige na intenção de fazer algo que funcione pra todo mundo: leitor, designer, diretor, ilustrador e por aí vai.
Você poderia listar três trabalhos seus de ilustração editorial que te deixaram particularmente orgulhoso (comentando um pouquinho sobre cada um)?
Vou citar dois exemplos de trabalhos que eu gosto por motivos diferentes.
O primeiro, foi minha primeira publicação na New Yorker. A pauta em si não era algo tão relevante, precisei fazer um retrato da Sandra Oh pro lançamento da série The Chair, que estreou naquele ano na Netflix. Publicar algo na New Yorker era um objetivo que eu achei que não realizaria, no mínimo, 10 anos pra frente. E ter isso acontecendo tão cedo foi uma surpresa super agradável.
E segundo, uma série de ilustrações que fiz pro The Intercept de quatro artigos sobre como o racismo está inserido também em ferramentas tecnológicas que a polícia e processos seletivos usam. Foi um trabalho que gostei muito de fazer pela relevância e o desafio de transformar algo tão pesado em imagens que convidasse o leitor ao artigo e não o afastasse pelo choque.
Me conta também alguns dos seus ilustradores editoriais preferidos? Quais artistas você admira e são referência para você?
A lista é gigante, então vou focar nas minhas influências diretas no editorial: R. Kikuo Johnson, Adrian Tomine e Bianca Bagnarelli.
E me fala, por favor, quais técnicas você usou na produção do cartaz do blog? Com quais materiais você trabalhou? Aliás, no geral, quais são as suas preferências em relação a técnicas e materiais de trabalho? O que você costuma usar, por exemplo, na produção da Meio Fio?
No cartaz eu fiz tudo digitalmente. Tem um personagem que seria você e ele eu defini no papel, mas de resto foi feito em pixels.
Minha preferência de técnica é papel e nanquim, gosto de usar pincel e papel, seria um sonho massa só trabalhar com eles. Devido aos prazos e à natureza do meu trabalho fixo (sou ilustrador em uma agência), eu fiquei focado demais no digital e “preso” nisso por anos. Mas recentemente tenho resgatado meu prazer pelo analógico no meu tempo livre, e consequentemente pelo meu ofício. A No Meio Fio é a grande responsável por esse resgate, uso geralmente nanquim e pincel e o papel que tiver disponível, experimentar materiais e jeitos de desenhar tem sido fundamental e é nesse quadrinho que me arrisco. Tem tiras que fiz na pena, outras só na caneta e outras só no pincel.
“Estava ensaiando fazer as pazes com os quadrinhos”
Queria saber mais sobre a sua relação com quadrinhos. O que você gosta de ler? Quais são seus quadrinhos e autores preferidos?
Cara, quadrinhos me acompanham desde antes de aprender a ler. Tudo graças ao meu pai que era fã de quadrinhos, mesmo não sendo um colecionista ele me contava as histórias que leu quando mais jovem e dizia que um dia ia me mostrar os gibis da sua época. Coisas como Fantasma, Príncipe Valente, Flash Gordon, Zorro, Tarzan e Tex.
Meus autores favoritos são o Frederik Peeters e o Bill Watterson.
O Peeters, com o Pílulas Azuis, me trouxe de volta pros quadrinhos e me fez me apaixonar pela mídia de novo. E o Bill Watterson, que a cada leitura de Calvin e Haroldo é uma redescoberta, não tem muito o que falar sobre.
Gosto de ler quadrinhos mais “normais” do “dia a dia”, sabe? Tipo as coisas que o Tomine faz, o último do Kikuo Johnson (No One Else) é incrível. Tenho voltado a ler algumas coisas como Spirou e Gus, garimpando uns Asterix. E também tiras humor, coisa que te deixa um sorriso inocente no rosto no meio de um dia cansado.
Meu quadrinho favorito é sempre difícil dizer, então vou ficar com o último que li que é The Smell of Starving Boys, escrito pela Loo Hui Phang e desenhada pelo Frederik Peeters.
Também queria saber mais sobre as origens da Meio Fio. Qual foi o ponto de partida desse projeto?
Acho que em 2019 eu tive a primeira ideia pra essa série, estava vendo álbuns da minha infância e muitas memórias vieram, em especial uma que um dia eu pretendo explorar.
Eu estava ensaiando há um tempão fazer as pazes com os quadrinhos e tentei usar um “evento” que acontece no instagram em outubro pra testar isso. Esse evento consiste em você desenhar todos os dias alguma coisa usando a tag #inktober, cheguei a fazer umas cinco páginas e desisti pois tinha mais corpo e o formato não me agradou. A ideia da história ficou maturando na minha mente e entre outros projetos de quadrinho ou não.
No fim de 2022 eu rabisquei o que seria a primeira tira e escrevi o nome da série no rodapé do papel, isso me deu confiança pra contar pra amigos que me incentivaram a fazer.
Você começou publicando a Meio Fio no Instagram, com outro título. Depois você recomeçou o projeto, com outro nome, na sua newsletter. Por que esse recomeço?
Como eu ainda estava no processo de desenhar tudo 100% digital, acabei confundindo as coisas com meus trabalhos comerciais. Eventualmente isso acabou me cansando muito, eu buscava uma fidelidade visual com o que eu achava que o público iria querer de mim, já que em meus trabalhos meu desenho tinha mais cuidado, alguns detalhes e etc. Acabou que isso foi um tiro no pé em certo ponto, eu ia pra rua tirando foto dos lugares que cresci e vivi pra usar de referência. Cada detalhezinho precisava ser perfeito, coisa que ninguém se importava. Também teve o formato, comecei colocando no Instagram em quadrados e isso acabou me desanimando também. Desenho minhas tiras de forma horizontal e gosto que elas sejam lidas assim, só que as redes sociais não são muito amigas desse formato, onde tudo é vertical. Por fim, depois de uma conversa a toa com meu pai, ele me disse sem saber de nada: “Legal esses quadrinhos que você tem feito, mas parece que você tá se esforçando demais. Tudo bem que seu desenho é bonito mas você precisa se divertir.”
Isso ficou na minha cabeça e eu fiquei digerindo tudo por umas semanas. A ideia era nem fazer mais nada e desistir de novo, mas no meio do processo eu rabiscava a toa o traço que você tá vendo hoje, algo mais orgânico e espontâneo, sem o rigor estético de antes, bem mais desapegado e natural. Algo como uma assinatura minha, sabe?
Tudo isso junto fez o Instagram perder o sentido, ao menos naquele momento, e veio a ideia de uma newsletter. Eu já queria documentar alguns processos e encurtar o caminho entre quem consome meu trabalho, de quebra seria um bom lugar para publicar a tira, consigo usar o formato ideal e também enviar ela direto para quem assina. Hoje tenho pulverizado o quadrinho novamente no Instagram e também no meu site. Consigo perceber as diferenças das redes e do público que cada uma atinge, então fica a cargo de cada um sobre como prefere ler.
Fico curioso em relação aos seus planos para o futuro da Meio Fio. Gosto do começo da tira, mas a maior parte das tiras do tipo que li acabou ganhando fôlego e mais consistência com o tempo. Enfim, até onde você planeja ir com a série?
Eu tenho outras histórias em mente que envolvem esses personagens, mas nem todas elas cabem no formato de tira, então publicações e formatos diferentes acabam sendo a melhor saída.
No Meio Fio fala sobre amadurecimento e também o fim das coisas, então ela já começou com data pra acabar. Mas tenho tentado seguir sem pressão e aberto a esticar ou encurtar esse fim conforme eu vá sentindo.
O foco é me divertir.
Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Leitura: Eu comecei, O Mundo Sem Fim, de Christophe Blain e Jean-Marc Jancovici. Tô apaixonado pela narrativa desse gibi.
Assistindo: Only Murders in The Building, das minhas séries recentes favoritas. Ótima pra desestressar e ficar curioso pro próximo episódio.
Ouvindo: Hygiene, do Drug Church. Bom pra quando você tá bravo com seu patrão.