O quadrinista espanhol Joan Cornellà será finalmente publicado no Brasil. O álbum Zonzo está em pré-venda a partir de hoje no site da editora Mino, responsável pelo título por aqui. Depois de alguns meses de insistência, o artista topou conversar comigo sobre o lançamento de seu trabalho no Brasil. Transformei a conversa em matéria e o texto foi publicado ontem no Nexo. Também reuni depoimentos bem interessantes de alguns dos meus quadrinistas brasileiros preferidos (Diego Gerlach, Bruno Maron e Breno Ferreira) e da editora Luciana Foraciepe (Maria Nanquim) sobre o trabalho do Cornellà. A íntegra da minha conversa com o artista espanhol você lê a seguir:
Você ganhará pela primeira vez uma edição brasileira. Quando você produz seus quadrinhos, costuma pensar no potencial alcance da obra?
Na verdade não é algo que eu levo em conta quando estou criando meus quadrinhos, mas é claro que alguém que se dedica a isso quer ter seu trabalho reconhecido. As redes sociais foram canais de difusão gigantescos do meu trabalho, criaram um público que eu não teria obtido de outra maneira. Aliás, a maioria dos meus seguidores são do Brasil. Espero que alguém, algum dia, me explique o porquê disso!
O Zonzo não tem falas, assim como a maior parte dos quadrinhos que você vem produzindo recentemente. Isso torna mais universal a leitura das suas obras. Porque investir nesse tipo de narrativa?
No começo fiz tirinhas mudas para experimentar, mas a medida que publicava no Facebook percebi que por serem mudas elas poderiam chegar a muito mais gente. Não foi uma decisão deliberada, mas surgiu a medida que tentava coisas diferentes, na base da tentativa e erro, e acabei criando o perfil desse estilo dos quadrinhos que faço hoje.
O seu estilo mudou muito ao longo dos anos. Vejo muito diálogo do seu trabalho inicial com quadrinhos underground dos Estados Unidos, principalmente do Daniel Clowes. Você tinha esse tipo de referência no começo da sua carreira?
O quadrinho underground americano foi por muito tempo minha principal fonte de inspiração. Crumb e Clowes continuam sendo grandes influências para mim, mesmo que agora já faça um tempo que elas acabaram se diluindo no meu trabalho. No momento considero outros quadrinhos até mais importantes e influentes na minha produção, como Cowboy Henk.
E hoje, que tipo de humor você consome? O que te faz rir?
Eu gosto muito de comediantes como Bill Hicks, George Carrlin e Louis CK. Qualquer coisa do Monty Python ainda me faz rir, por mais que eu já tenha visto mil vezes. Também os quadrinhos absurdos do Michael Kupperman – mesmo que pareça que não faz sentido, o que me faz rir não são quadrinhos e sim sketches de humor dele. Tem uma série britânica chamada Look Around You que eu recomendo para todo mundo.
Com o passar dos anos você passou a usar cada vez menos texto, o traço ficou cada vez mais simples e a paleta de cores cada vez mais gritante. Porque essa mudança?
Desenhar com cores berrantes e um visual fofo permite que você consiga contar coisas mais pesadas. Dá para falar de morte com maior facilidade e permite que você construa o humor pelo contraste. Antes eu falava dos mesmos temas com um estilo mais tosco e era mais difícil gerar interesse em pessoas que não sentiam qualquer afinidade por esse estilo de quadrinho
Você recentemente foi banido do Facebook por 30 dias. Há um debate crescente aqui no Brasil em relação aos limites do humor. Você vê um limite para o humor? Há alguma piada que acredita que não pode ser feita?
Por acaso, esse mês fui bloqueado de novo no Facebook. São 30 longos dias (ao menos para mim!) sem poder publicar nada e essa censura começa a ser cada vez mais constante, pois agora tenho um alcance ainda maior. Enfim, temo que um dia vão acabar fechando minha conta – o que é bem absurdo, já que as pessoas vão continuar compartilhando minhas tirinhas sem que elas sejam censuradas. É um paradoxo: quanto mais seguidores eu tenho, maior a probabilidade que eu seja censurado
Talvez pela popularidade de seu trabalho na internet, você precisa lidar com um patrulhamento intensivo nas redes sociais. Fora da internet, nos trabalhos que você faz para publicações impressas também há esse tipo de questionamento?
Em relação a isso, o maior lixo é o Facebook. É a rede social em que tenho o maior número de seguidores e sou mais popular, mas ao mesmo tempo o Facebook parece uma velha estúpida do Tea Party. No Twitter não tenho esse problema, porém não tenho nem um décimo do alcance que tenho no Facebook, por não ter a mesma quantidade de seguidores. Eu gosto de ter essa liberdade no Twitter, se bem que já vi casos em que alguém é demitido por ter escrito algo ali, justo no lugar em que não limitam sua liberdade de expressão.
Os debates relacionados às suas publicações também chamam ainda mais atenção para o seu trabalho. Você gosta que seus quadrinhos gerem esse tipo de repercussão? Pela sua experiência com seus críticos, você costuma ter em mente o público que se sentirá incomodado com uma obra enquanto ela está sendo produzida?
Prefiro ficar distante das interpretações que fazem das minhas tiras, mas de fato gosto de saber que uma mesma historia possa ter leituras tão diferentes. As vezes fazem discursos filosóficos que eu nem entendo ou tem gente que vê uma crítica social super elaborada e complexa. Não sei, cada um que tire suas próprias conclusões, eu mesmo não consigo ter uma ideia sintetizada do que quero dizer, na maioria das vezes prefiro que as tiras tenham um sentido aberto e ambivalente.
Pela sua experiência com seus críticos, você costuma ter em mente o público que se sentirá incomodado com uma obra enquanto ela está sendo produzida?
Não. Tento não pensar nisso quando estou desenhando. O politicamente correto é a maior trava do humor no presente. Se você tenta agradar todo mundo quando está fazendo humor, deixa de ter graça. O humor é, em si mesmo, crítico e subversivo. Se você retira isso não sobra nada, aí já não é mais humor.
Você acabou de financiar coletivamente a adaptação dos seus quadrinhos para o formato de animação. Pode falar um pouco mais sobre esse projeto?
Finalmente consegui o financiamento para fazer esse projeto de animação. A minha ideia é levar os quadrinhos a outro meio, em que eu possa criar novos jeitos de abordar os temas dos quais falo habitualmente. Acho que o som e o movimento abrem novas portas nesse mundo de caras sorridentes. Quando estiver pronto vou publicar no YouTube. Por enquanto estou trabalhando nisso e contente com os resultados. Só não parece muito com o estilo da Pixar.
“As narrativas dele são tipo uma boneca russa de niilismo, onde um ultraje está a meros quadros de ser suplantado por outro ainda maior. Acho um trampo muito intrigante narrativa e esteticamente, a maneira como ele subverte o vocabulário visual dos quadrinhos pra criar um universo em que esse humor repulsivo, deprimido, gere gargalhadas orgásticas. Essa busca contínua pelo tabu parece sempre em vias de ultrapassar algum limite, que no fim cabe ao leitor definir. Há, por exemplo, uma tira em que ele representa uma criança africana faminta através da iconografia blackface, o que eu acho um ato dos mais falhos, vindo de uma imaginação visual tão ampla” – Diego Gerlach.
“Tudo me impressiona nele. O traço, as cores e a narrativa nonsense e surreal. O trabalho dele tem vários níveis de entendimento. As pessoas podem gostar ou não, mas acho que ninguém fica indiferente” – Luciana Foraciepe (Maria Nanquim).
“Ele deve ser um dos poucos seres humanos que se aventuram de forma desgovernada pelo humor macabro. Desconfio que ele goze de certa imunidade por ser insano além do ponto de ser problematizado pela patrulha do bom senso universal” – Bruno Maron.
“Gosto bastante, não só pelo humor totalmente incorreto, ofensivo e desconcertante, mas especialmente pelo jeito característico como ele explora isso nos seus quadrinhos. Sempre abusando das cores chapadas quase infantis entre personagens que parecem ter saído de uma embalagem de goma de mascar. O resultado são situações aparentemente inocentes, porém profundamente constrangedoras, coisa que causa aquela sensação aguda de ‘qual o problema desse cara?’. E na sequência, ‘qual o meu problema ao achar isso tão foda?’” – Breno Ferreira.
‘Desenhar com visual fofo permite que você consiga contar coisas mais pesadas’
Quadrinista catalão Joan Cornellà será publicado pela primeira vez no Brasil e fala ao ‘Nexo’ sobre o que está por trás de seus controversos quadrinhos
Você provavelmente já esbarrou pelo Facebook com um quadrinho do artista espanhol Joan Cornellà. São obras com cores gritantes, traços infantis e conteúdos absurdos como mães botando fogo nos próprios filhos e casos de assassinatos entre irmãos siameses.
Com mais de três milhões de curtidas em sua página, o quadrinista nascido em Barcelona, na região autônoma da Catalunha, na Espanha, ficou conhecido nas redes sociais pelo tom insólito e pelos vários questionamentos gerados por suas HQs. Mas Cornellà também tem suas dúvidas e pede esclarecimentos aos fãs brasileiros em entrevista ao Nexo: “A maioria dos meus seguidores são do Brasil. Espero que alguém, algum dia, me explique o porquê disso”.
Neste mês será lançada pela primeira vez no Brasil uma coletânea impressa dos quadrinhos de Cornellà. Com 56 páginas, ‘Zonzo’ saiu na Espanha em maio de 2015 e chega ao Brasil pela editora Mino, custando R$48. O álbum estará em pré-venda a partir do dia 15 de fevereiro.
“Desenhar com cores berrantes e um visual fofo permite que você consiga contar coisas mais pesadas. Dá para falar de morte com maior facilidade e permite que você construa o humor pelo contraste. Antes eu falava dos mesmos temas com um estilo mais tosco e era mais difícil gerar interesse em pessoas que não sentiam qualquer afinidade por esse estilo de quadrinho”, explica Cornellà sobre o desenho que fez sua fama no Brasil, distinto daquele do início de sua carreira. Seus trabalhos mudaram bastante ao longo dos anos. Os primeiros quadrinhos publicados em seu blog, datados de 2011, são repletos de textos e muitas vezes em preto e branco.
A influência do quadrinho underground americano
Publicado de forma independente na Espanha, ‘Zonzo’ chega ao Brasil em seguida ao lançamento da primeira coletânea dos trabalhos de Cornellà nos Estados Unidos. Na América do Norte ele foi lançado pela Fantagraphics, casa de alguns dos ídolos do artista espanhol, como os quadrinistas Robert Crumb e Daniel Clowes.
“O quadrinho underground americano foi por muito tempo minha principal fonte de inspiração. Crumb e Clowes continuam sendo grandes influências para mim, mesmo que agora já faça um tempo que elas acabaram se diluindo no meu trabalho. No momento considero outros quadrinhos até mais importantes e influentes na minha produção, como Cowboy Henk” conta, citando a HQ belga publicada entre 1981 e 2011 e protagonizada por um homem loiro, excêntrico, viciado em drogas e de comportamento imprevisível.
“No começo fiz tirinhas mudas para experimentar, mas percebi que elas poderiam chegar em muito mais gente. Não foi uma decisão deliberada, mas surgida a medida que tentava coisas diferentes”, justifica o autor de 35 anos. A padronização atual na estética das tiras de Cornellà ampliou seu alcance e potencializou a repercussão de seus erros e acertos.
Boneca russa de niilismo
O trabalho de Cornellà repercute não só entre usuários brasileiros do Facebook, como também entre artista e especialistas do meio no país.
O quadrinista brasileiro Diego Gerlach reitera algumas das muitas qualidades do autor catalão, mas faz ressalvas ao conteúdo de determinadas tiras: “As narrativas dele são tipo uma boneca russa de niilismo, onde um ultraje está a meros quadros de ser suplantado por outro ainda maior. Acho um trampo muito intrigante narrativa e esteticamente, a maneira como ele subverte o vocabulário visual dos quadrinhos pra criar um universo em que esse humor repulsivo, deprimido, gere gargalhadas orgásticas. Essa busca contínua pelo tabu parece sempre em vias de ultrapassar algum limite, que no fim cabe ao leitor definir. Há, por exemplo, uma tira em que ele representa uma criança africana faminta através da iconografia blackface, o que eu acho um ato dos mais falhos, vindo de uma imaginação visual tão ampla”.
Criadora da página Maria Nanquim, dedicada à reprodução de tiras e quadrinhos de humor, a publicitária Luciana Foraciepe é uma das maiores difusoras dos trabalhos de Cornellà no Brasil. Ela tenta explicar alguns dos elementos que justificam a popularidade do autor: “Tudo me impressiona nele. O traço, as cores e a narrativa nonsense e surreal. O trabalho dele tem vários níveis de entendimento. As pessoas podem gostar ou não, mas acho que ninguém fica indiferente”.
A patrulha do bom senso universal
Outro fã do trabalho de Cornellà é o quadrinista Bruno Maron, autor da série Dinâmica de Bruto: “Ele deve ser um dos poucos seres humanos que se aventuram de forma desgovernada pelo humor macabro. Desconfio que ele goze de certa imunidade por ser insano além do ponto de ser problematizado pela patrulha do bom senso universal”.
As muitas possibilidades de leitura dos trabalhos de Cornellà resultam em discussões intermináveis nos comentários de suas publicações, com pessoas tentando compreender o significado e a mensagem por trás de cada obra. Outra consequência são os banimentos constantes das contas do quadrinista no Facebook e no Instagram. O mais recente foi no início de fevereiro.
“São 30 longos dias (ao menos para mim!) sem poder publicar nada e essa censura começa a ser cada vez mais constante. Temo que um dia vão acabar fechando minha conta – o que é bem absurdo já que as pessoas vão continuar compartilhando minhas tirinhas sem que elas sejam censuradas. É um paradoxo: quanto mais seguidores eu tenho, maior a probabilidade que eu seja censurado”, reflete o autor.
A velha estúpida do Tea Party
Apesar de seu sucesso no Facebook, Cornellà insiste nas falhas da rede social: “Lá tenho o maior número de seguidores e sou mais popular, mas ao mesmo tempo o Facebook parece uma velha estúpida do Tea Party. No Twitter não tenho esse problema, mas não tenho um décimo do alcance”.
Autor das tiras da série Cabuloso Suco Gástrico, o quadrinista Breno Ferreira tenta explicar as sensações contraditórias oriundas da leitura dos trabalhos do autor espanhol: “Gosto bastante, não só pelo humor totalmente incorreto, ofensivo e desconcertante, mas especialmente pelo jeito característico como ele explora isso nos seus quadrinhos. Sempre abusando das cores chapadas quase infantis entre personagens que parecem ter saído de uma embalagem de goma de mascar. O resultado são situações aparentemente inocentes, porém profundamente constrangedoras, coisa que causa aquela sensação aguda de ‘qual o problema desse cara?’. E na sequência, ‘qual o meu problema ao achar isso tão foda?’”.
As várias sensações e os sentimentos decorrentes da leituras dos quadrinhos de Cornellà agradam o próprio autor: “Prefiro ficar distante das interpretações que fazem das minhas tiras, mas de fato gosto de saber que uma mesma historia possa ter leituras tão diferentes. As vezes fazem discursos filosóficos que eu nem entendo e tem gente que vê uma crítica social super elaborada e complexa. Não sei, cada um que tire suas próprias conclusões. Eu mesmo não consigo ter uma ideia sintetizada do que quero dizer, na maioria das vezes prefiro que as tiras tenham um sentido aberto e ambivalente”.
Longe da Pixar
Apesar das publicações impressas de Cornellà estarem pela primeira vez chegando em outros países, o autor tem investido em outras mídias em sua terra natal. No fim de 2015 ele conseguiu reunir mais de 91 mil euros em uma campanha de financiamento coletivo para bancar a adaptação de seus quadrinhos mudos para animações curtas, que serão publicadas no YouTube e posteriormente reunidas em DVDs e Blu-Rays.
“Finalmente consegui o financiamento para fazer esse projeto de animação. A minha ideia é levar os quadrinhos a outro meio, em que eu possa criar novos jeitos de abordar os temas dos quais falo habitualmente. Acho que o som e o movimento abrem novas portas nesse mundo de caras sorridentes. Quando estiver pronto vou publicar no YouTube. Por enquanto estou trabalhando nisso e contente com os resultados. Só não parece muito com o estilo da Pixar”, promete Cornellà.