Leia Monica com uma vela queimando e você verá todo seu futuro

Escrevi sobre Monica (Nemo), obra de Daniel Clowes, para o anúncio das obras vencedoras do Prêmio Grampo 2024 de Grandes HQs. O título ficou em primeiro lugar na premiação. Você confere o resultado completo do Grampo 2024 clicando aqui e as 20 listas individuais do júri clicando aqui. Reproduzo a seguir, o meu texto sobre Monica:

Simpatia pelo bizarro

Minhas obras de arte preferidas são aquelas que deixam um impacto em quem eu sou. Não que toda obra de arte precise fazer de mim uma nova pessoa, mas acho que estou sempre em busca daquelas que proporcionem uma experiência transformadora. E isso não diz respeito à qualidade da obra. Não precisa ser o melhor filme, a melhor HQ, a melhor música. É uma questão de como aquilo me toca, como aquele trabalho passa a fazer parte de mim. É raro, mas é quando aquela criação passa a compor a minha personalidade. 

Não é o caso de Monica, obra de Daniel Clowes publicada em português pela editora Nemo, com tradução de Érico Assis. Monica chegou perto disso e talvez até seja o melhor quadrinho de Clowes, mas suspeito que Ghost World tenha tido um impacto maior em mim. Mas já volto em Monica.

Peço um minuto da sua atenção para falar sobre Quase Famosos (2000), filme meio que autobiográfico do jornalista e cineasta Cameron Crowe sobre um jovem jornalista cobrindo a turnê de um conjunto de rock em ascensão nos Estados Unidos dos anos 1970.

Quase Famosos teve sua influência na minha escolha pelo jornalismo, pela cobertura de cultura e pela busca por grandes entrevistas. Quero comentar uma cena específica do filme. Ela mostra o protagonista do longa, William Miller, ainda pequeno, descobrindo a coleção de discos deixados para ele por sua irmã mais velha, recém-saída de casa.

Quadro de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)


Ele passa por capas de discos célebres de Beach Boys, Led Zeppelin, Neil Young, Cream, Jimi Hendrix, Bob Dylan, Joni Mitchell e outros. A coleção termina em Tommy, do The Who. Dentro dele consta um bilhete da irmã do menino: “Ouça Tommy com uma vela queimando e você verá todo seu futuro”. Ele segue o ritual e a cena seguinte é ambientada alguns anos depois, com o protagonista em uma sala de Ensino Médio obcecado por seus ídolos de rock.

Talvez essa cena seja um retrato fiel do impacto de uma obra de arte em alguém. Mas cito essa sequência por causa do ritual representado nela. Os quadrinhos de Daniel Clowes deveriam ser lidos com uma vela queimando. Cada novo livro publicado por ele deve ser celebrado e compreendido como, sei lá, um novo disco dos Rolling Stones.

Clowes foi um dos expoentes do novo quadrinho americano do fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Com colegas como Charles Burns e Chris Ware, ele potencializou as experimentações autorais de precursores como Robert Crumb e Art Spiegelman. Monica foi a primeira HQ do quadrinista em seis anos, desde o lançamento da ficção científica Paciência (lançada no Brasil pela Nemo), em 2017. Ele deu início ao álbum como uma coletânea de histórias de gêneros inspiradas em sua infância misteriosa. Veio a pandemia do novo coronavírus, seus poucos familiares morreram, suas fontes chegaram ao fim e ele optou por investir nos ares bizarros da HQ.

Os trabalhos mais recentes de Clowes têm ido por uma clareza narrativa que remetem a Hergé, mas a estranheza crescente de suas obras é singular para além dos quadrinhos. Sugiro: leia Monica com uma vela queimando. Tendo a crer que nada de ruim vai acontecer.


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